domingo, 13 de março de 2011

Por que tinha que ser assim?

Andava com certa irritabilidade empurrando o carrinho. Odiava fazer compras, pagar contas e todas aquelas responsabilidades pós trabalho que pareciam cair-lhes nas costas. Foi quando enquanto numa lentidão de pensamentos além da habitual - porque não era ali que ela estava, estava no trabalho doméstico obrigatório e na visão horripilante daquele ser mascando um bagaço de laranja em frente a TV - escolhia a massa de tomate. Apanhou uma latinha qualquer -com-tempero-sem-tempero-concentrada-suave- quanta diversidade para uma latinha que no fim das contas não temperaria sua vida e nem lhe daria concentração ou suavidade para a solução das suas questões existenciais. "Quanta filosofia numa lata de massa de tomate", pensou quando virou o rosto e o viu.
Não sabia se ele a reconheceria, mas era o homem de sua vida, como muitas diriam, como ela já disse e pensava naquele instante. Virou rapidamete o rosto para fingir que não o havia visto, tornou para as latas, e numa tentativa de disfarce a devolveu na prateleira. Trocou a lata, apanhou mais latas, derrubou as latas, desequilibrou do salto, derrubou a prateleira. E aquele embaraço era apenas, sem que ela soubesse, o desejo de mudar a vida, de tentar outras opções, e ver que nenhuma outra lhe cabia, ver que lhe caíram as tentativas das mãos, era desequilibrar a mente e derrubar a alma.
Chamou a atenção. Ele a viu e riu. Ajoelhou ao seu lado e a ajudou a recolher alguma coisa que podia ser recolhida naquele drama interior que ela vivia em meio a uma aparente cômica situação. Mas ele segurou suas mãos por mais de cinco segundos enquanto alguém anunciava no microfone "colaboradora fulana, compareça ao setor de sei lá o quê". Ele lembrava dela, "não havia como não lembrar".
Fitou os olhos dela, laceou, deu um nó e os fixou nos dele sem sorriso algum. A olhou tão profundamente que no momento ela não entendeu porque não se beijaram ardentemente em meio a todas as latas amassadas, em meio a vermelhidão escorrida e mal cheirosa da massa de alguns potes de vidro que haviam se quebrado. Que danassem os cortes. O coração já estava cortado. Ela queria o beijo, o abraço, uma atenção a mais do que o olhar. E ele, ainda com os olhos pregados nos dela e nela toda, empurrou suas mãos pequenas contra o chão com suavidade e as apertou com força. Sem sorriso ou qualquer expressão perceptível disse muito baixo "perdão" ao pé do ouvido, o que à ela pareceu um delírio sonoro. Então uma mulher virou o corredor de mãos dadas a uma criança "querido, estava procurando por você".
E ela, chocada, evocou do seu âmago algo que chamou de estupidez e que a fez dizer "desculpe, ele só estava tentando ajudar a arrumar a bagunça que fiz". A mulher sorriu "não se preocupe, a moça da limpeza está vindo, vamos amor".
Ela, sem saber como extaria seu rosto -alegre-triste-franzido-assustado- agradeceu de cabeça baixa, e só a levantou quando percebeu que estavam todos de costas, menos a criança que ainda olhava para tras. Eles foram. Ele foi-se. Ele já havia ido há tanto tempo. Ficou imaginando aquele quadro de família feliz, o "filho que eu nunca teve", "o amor que nunca teve", "a mulher que gostaria de ter sido".
Quão melhor tudo aquilo poderia ser do que sua medíocre vida que naquele instante ela queria que acabasse. Chorou de maneira amargurada, sem esconder lágrimas ou soluços, ali mesmo em meio as latas de massas de tomate. Abandonou tudo e voltou para casa onde ninguém perceberia que não havia compras, ou sujeira, ou dor, que não havia ela.
Tomou um banho, secou os cabelos, não como de costume, quis estar bonita - e era tão bonita - perfumada, maquiagem leve,  roupinha insinuante para provocar na sacada. E provocou. Não queria beber, nem fumar, nem qualquer outra excitação - apenas ser vista. E o foi, de maneira insistente, variada, por homens de todas as idades. Não se comoveu, talvez porque não se amava.
Foi para a cama onde o marido já estava a sabe-se lá quanto tempo depois do futebol, da cerveja, dos amigos, do papo imbecíl que ela não queria ouvir. Encolheu-se no seu canto da cama o máximo que pode e novamente chorou pensando na "família feliz que vira no mercado" e mais ainda no homem que poderia estar ao seu lado. Não, não poderia, era apenas o que ela queria. Olhou para o teto do quarto e "meu Deus, poderia ser diferente". Olhou rapidamente para o lado a fim de que o marido não a percebesse de maneira alguma e pensou "por que tinha que ser assim?". Dormiu embalada com o choro mudo. Lágrimas e olhos fechados e vermelhos. Engoliu todos os suspiros da mesma maneira que engolia a vida.

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