quarta-feira, 13 de abril de 2011

Brinquedos do Pensar

Era uma vez uma menina que nem sabia que era menina. Ela sonhava em ser sereia, e repetidas vezes brincava em pensamento que o era. Era uma vez uma menina que brincava por meio de pensamentos, esses seus brinquedos prediletos, porque ninguém via, ninguém segurava, ninguém lhe obrigava a guardar, ninguém dizia se custaria muito tê-lo, ou que ela não poderia manuseá-lo devido a sua tenra idade. Então a menina pensava, e talvez de tanto pensar perdera o senso de que era menina. Sim, fora sereia, mas afora isso, fora uma mãe guardiã de seus irmãos, fora a filhinha do papai, fora a dona da casa e a dona de si mesma. Não havia armas em seu arsenal de pensamentos, até limitados, porque ela demorou a criar amigos. Era uma vez uma menina que amigos nem inventava, mas entrava em todas as histórias que lia (e como lia) e fazia-se personagem de todas elas. Aprendeu que sereias eram mais do que imaginava e desejou o poder de domínio do canto e aprendeu a cantar. Andou inúmeras vezes com Dorothy pela estrada de tijolos amarelos, mas achava uma tolice querer encontrar-se com o Mágico de Oz, afinal, para que voltar para o Kansas se ela podia “além do arco-íris”. Resolveu então viajar com Fernão Capelo Gaivota e chorava com ele a cada momento de rejeição, a cada queda na sua tentativa de voar como águia. Não gostou de Monteiro Lobato por dizer tão mal da velha Anastácia. Sem entender como podia ser admirado, não quis passar nem perto do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Foi a menina vendedora de fósforos e imaginava a cena de sua morte tão linda e iluminava como a dela, com seus cabelos louros brilhando ao sol da manhã de inverno num país tão longe. Era uma vez uma menina que brincava tanto de pensar que nem sabia como era o seu rosto, pele, cabelos, corpo e nem percebia que crescia, apenas quando diziam. E ela não gostava do que lhe diziam, então preferia voltar aos pensamentos, aonde ser Iracema valia mais a pena. Gostava da dúvida que causava em Bentinho, quando Capitu, mas recusou viver a despedida trágica de seu Amor de Perdição. Entretanto tenha muito chorado com Romeu e Julieta, viveu aquela paixão mortal, mas preferia o amor insano de Romeu. Apaixonou-se por Allan Poe e Augusto dos Anjos. Depois conheceu Drummond e então seus pensamentos começaram a ganhar liberdade tal que as histórias e poesias não lhe bastavam e ela criava as dela, com seus amores platônicos, suas paixões enlouquecedoras e libertinagens permitidas. Fernando Pessoa lhe dera força para tal intento. Criava tanto que se esquecia de olhar-se no espelho... Então que inventou um fora do pensamento tão ruim desde sempre. E quando seu pensamento desgastou-se, percebeu que não poderia inventar mais nada que pudesse ser além do que era e nem sabia. A lembrança de Clarice Lispector lhe permitiu toda a tristeza que lhe cabia quando finalmente percebeu-se mulher. Então a menina que nunca soube que foi menina e que havia deixado de ser menina há tanto tempo, odiou seu novo velho estado. E por odiar-se inventou que todos a odiavam também.
E essa menina era a coisinha mais linda do mundo e havia tornado-se uma mulher exoticamente bela, tanto quanto era quando menina. De belo sorriso e gosto diferenciado, ainda que jamais pudesse ter percebido. Em sua mente nunca fora amada e nunca amou. Criou amizades então e desfez-se dos amores que nunca existiram.
Enfim, era uma vez uma mulher que demorou anos para enxergar-se além de seus pensamentos, mas de repente viu-se bela: pele dourada, corpo torneado, cabelos do jeito que quisesse e alguns adornos que lhe traziam a um estado de graça de ser mais mulher.  A partir de então imensamente desejada, cobiçada, interessante, inteligente – todos declarando, declamando, cercando e assustando por ser algo além da imaginação. E agora essa mulher não sabe o que fazer, não com o tempo vago do pensamento, mas com essa coisa que lhe parece realidade: tantos olhares e tantos queres, sem necessidade alguma de invenção.

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